C A H E R J

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Capelania Evangélica do Rio de Janeiro

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

A morte do crente

A morte do crente 

São Paulo, SP, Brazil
Formada em Letras pela USP, professora de Português e Espanhol, estudante de Teologia e membro da Assembleia de Deus.
No início do ano novo, perdemos um amigo de longa data que nos era muito querido. Ele era pastor e pastoreou uma igreja em que congregávamos há mais de 20 anos atrás.

Essa triste ocasião me fez pensar no significado da morte para o crente.

Sempre que uma pessoa querida morre, sentimos uma sensação indescritível de vazio e perda. Parece mentira que a pessoa realmente se foi para sempre e que não a veremos mais. Ver inerte em um caixão o corpo de quem outrora sorria e conversava conosco, é uma das coisas mais cruéis de se vivenciar.

Mas por que a morte para nós é tão ruim? Será que ela é o fim de tudo?

Os espíritas acreditam que cada pessoa morre e reencarna diversas vezes. Segundo a Bíblia, essa crença é falsa, pois “aos homens está ordenado morrerem uma vez, vindo, depois disso, o juízo” (Hebreus 9.27). Na verdade, se esse ensinamento fosse real, seria mesmo muito cruel que cada pessoa tivesse de enfrentar a morte diversas vezes.

Os católicos creem que quando a pessoa morre vai para o purgatório, para terminar de pagar pelos pecados que cometeu em vida, antes que possa ir para o Paraíso. Por isso, eles rezam pelas almas dos mortos, acendem velas em seus túmulos e até conversam com eles, pois acreditam que os que morreram podem nos ouvir aqui e interceder por nós no outro mundo.

O ensinamento bíblico é totalmente diverso da doutrina católica. Sabemos que, o que tivermos de fazer por alguém, devemos fazê-lo enquanto a pessoa ainda está viva. Depois que a pessoa morre, não adianta chorar no velório, fazer declarações de amor, levar flores ou ajudar a carregar o caixão. Quem morreu não sabe quem foi ou deixou de ir ao velório, tampouco pode ouvir o que se passa aqui entre os vivos. Claro que nós procuramos dar ao falecido um enterro digno, comprar um caixão bonito e também coroas de flores para acompanhar o velório, mas todas essas coisas, na verdade, são feitas por causa dos que ficam, para satisfazer a consciência dos parentes e amigos, pois ninguém tem coragem de pegar o corpo de alguém que amava e simplesmente jogar no rio.

Eu me pergunto como o pessoal da Confissão Positiva explica a morte. Se a doutrina deles fosse realmente verdadeira, qualquer um que não quisesse morrer ou não quisesse que alguém morresse, só precisaria ficar “profetizando” vida e tudo estaria resolvido. Mas a verdade é que a Confissão Positiva não passa de uma tremenda bobagem e que não tem nenhum apoio nem embasamento da Bíblia. Nenhum de nós tem poder sobre a morte.

Mas a questão é que, além da saudade que fica, será que podemos ter algum outro tipo de sentimento diante do falecimento de uma pessoa querida? Devemos nos desesperar pelo fato de não vê-la nunca mais, ou nos apegarmos à esperança de um reencontro?

Depois que Jesus morreu, seus discípulos ficaram muito tristes e desiludidos. Muito provavelmente, eles pensaram que haviam crido em vão quando resolveram seguir a Cristo. Em Lucas 24.13-35, vemos indícios dessa decepção na conversa que se passava entre dois discípulos que seguiam pelo caminho de Emaús. Era já o terceiro dia depois da morte de Jesus e eles pensavam que o Mestre ainda não havia ressuscitado e muito provavelmente nem ressuscitaria. De tão desolados que estavam, não se deram conta de que o terceiro viajante que se pôs a conversar com eles no caminho era o próprio Cristo ressurreto!

O apóstolo Paulo nos ensina claramente que, assim como Cristo ressuscitou, todos os que morrem nEle serão da mesma maneira ressuscitados: “Palavra fiel é esta: que, se morrermos com ele, também com ele viveremos” (2Timóteo 2.11).

Em 1Tessalonicenses 4.13-18, Paulo nos ensina sobre a doutrina da ressurreição dos mortos:

“Irmãos, não queremos que vocês sejam ignorantes quanto aos que dormem, para que não se entristeçam como os demais que não têm esperança. Se cremos que Jesus morreu e ressurgiu, cremos também que Deus trará, mediante Jesus e com ele, aqueles que nele dormiram. Dizemos a vocês, pela palavra do Senhor, que nós, os que estivermos vivos, os que ficarmos até a vinda do Senhor, certamente não precederemos os que dormem. Pois, dada a ordem, com a voz do arcanjo e o ressoar da trombeta de Deus, o próprio Senhor descerá dos céus, e os mortos em Cristo ressuscitarão primeiro. Depois nós, os que estivermos vivos seremos arrebatados com eles nas nuvens, para o encontro com o Senhor nos ares. E assim estaremos com o Senhor para sempre. Consolem-se uns aos outros com essas palavras.” (NVI)

Dessa forma, a Bíblia deixa claro qual deve ser o nosso sentimento com relação aos queridos que já morreram: esperança. Se Jesus morreu e ressuscitou, os que morrem com ele também serão ressuscitados.

Segunda Timóteo 1.10 nos ensina que Cristo aboliu a morte: “Ele tornou inoperante a morte e trouxe à luz a vida e a imortalidade por meio do Evangelho.” (NVI)

Vejamos ainda o que Paulo diz em 1Coríntios 15.51-55:

“Eis que eu lhes digo um mistério: Nem todos dormiremos, mas todos seremos transformados, num momento, num abrir e fechar de olhos, ao som da última trombeta. Pois a trombeta soará, os mortos ressuscitarão incorruptíveis e nós seremos transformados. Pois é necessário que aquilo que é corruptível se revista de incorruptibilidade, e aquilo que é mortal, se revista de imortalidade. Quando, porém o que é corruptível se revestir de incorruptibilidade, e o que é mortal, de imortalidade, então se cumprirá a palavra que está escrita: 'A morte foi destruída pela vitória'. 'Onde está, ó morte, a sua vitória? Onde está, ó morte, o seu aguilhão?' (NVI, grifo meu)

A ressurreição de Cristo é o que nos dá esperança diante da morte! Em 1Coríntios 15.12-27, Paulo ainda nos ensina que, “Se esperamos em Cristo só nesta vida, somos os mais miseráveis de todos os homens” (vv. 19). Mas a verdade é que Cristo ressuscitou, e assim a nossa fé não é vã!

Aquele que morre com Cristo, já venceu o último inimigo que tinha para ser aniquilado (1Coríntios 15.26), e está apto para receber a coroa da justiça (2Timóteo 4.8). Então, não haverá mais morte (Apocalipse 21.4) nem separação.

Sabemos, assim, que nem mesmo a morte pode nos separar do amor de Deus (Romanos 8.38) e que as nossas vidas estão escondidas com Cristo em Deus (Colossenses 3.3).

A Palavra do Senhor nos traz o consolo necessário diante da morte de alguém querido. Para o crente, a morte não representa um adeus, mas um até logo.

Gostaria de terminar esta reflexão com a letra de um hino do Grupo Logos:

Quando eu penso nas pessoas que eu amo
E que muitas delas não caminham mais
Pelas ruas de nossa cidade,
Nem habitam mais em nossas casas
E nem ouvem mais o nosso canto
Mas residem, para sempre, em nossa saudade...

Quando penso... tantas mãos que hoje faltam,
Tantos risos apagados...
Que é em vão guardar pedaços de recordações
Eu me agarro à esperança de nos vermos
Caminhando pelas ruas de cristal
Na cidade eterna, onde não haverá adeus.

 

O SEQUESTRO DA LAMENTAÇÃO


O SEQUESTRO DA LAMENTAÇÃO


Para começar, uma banda e uma música empolgante. Em seguida, uma moça bastante simpática pega o microfone e se dirige para o povo, dizendo: “Chegou o seu dia! Você é mais que vencedor! Todas as bênçãos que você determinar vão acontecer! Onde você colocar suas mãos prosperará! Você é filho do Rei! Você é filha do Rei! Nada pode abalar vocês! Nada pode derrubá-los! Chegou a hora da conquista! Alegrem-se! É tempo de restituição!”. E depois de um solo frenético de guitarra, ouve-se apenas um grito: “Sai do chãããão!”. Então, todos de uma só vez começam a pular e num só coro cantam clichês de conquista, de vitória, de restituição e por aí vai. Nesses cultos não há tempo nem espaço para a confissão de nossas mazelas ou de nossos dilemas. Só há tempo e espaço para a afirmação de nossas aparentes virtudes e certezas. Realmente sequestramos a lamentação de nossos cultos.
E por quê? Por um motivo bastante óbvio: medo. A lamentação é aterrorizante, causa pavor. Ela desestabiliza nossos pressupostos teológicos, nos humilha, nos constrange, afinal nos obriga a dizer o que realmente estamos sentindo e pensando. A lamentação incomoda muito, machuca o ego, põe em xeque a nossa inteligência e assusta o outro, uma vez que desestabiliza também as crenças dos que ouvem o lamento. A lamentação é a exposição das víceras que inultilmente tentamos esconder. Ela é suja, vem carregada de dúvidas, de questões pertubadoras, e, como somos demasiado assépticos, sempre tentamos nos livrar dela.
Como se não bastasse, além de ser terrível e suja, a lamentação também é bíblica. As Escrituras estão repletas de lamentações e de salmos de lamentações. A Bíblia tem um livro que se chama “Lamentações”! O que isso significa? Que não dá para matar e enterrar a lamentação de uma vez por todas. Ela sobrevive a todas as nossas artimanhas triunfalistas, assépticas e pseudoteológicas.
A lamentação é o contrário de uma oração “bonitinha”, politicamente correta. Ela é feia, melancólica, questionadora e às vezes chega a ser quase petulante. Mas não confunda lamentação com murmuração! A murmuração é uma oração vil, sempre presente na boca de um incrédulo, de um descrente. A murmuração é a afirmação de uma fé que se perdeu; por isso não passa de verborragia agressiva, apóstata e irremediavelmente revoltada contra a vontade soberana de Deus. Na murmuração, não há amor nem fé, só ressentimento, ódio de Deus, ofensa barata e comparações gratuitas (Ex 15.24; 16.3).
É bem verdade que a lamentação é uma oração feia, mas, diferente da murmuração, não é vil. Quer saber onde ela está? Procure-a apenas na boca de um crente que ama a Deus sobre todas as coisas. A lamentação jamais poderia estar na boca de alguém que perdeu a fé. Por outro lado, ela é sempre a confissão de alguém que, embora continue crendo e amando a Deus, tem um dilema que não pode mais ser escondido, nem jogado para debaixo do tapete. Lamentação, portanto, é coisa de crente e não de incrédulo; é coisa de gente piedosa, mas também de gente humana demasiadamente humana.
Jesus lamentou. No momento mais doloroso, mais humilhante e vexatório de sua vida, ele não lembrou de Deuteronômio 28, mas de um cântico de lamentação, escrito por Davi, em Salmo 22, que começa assim: “Deus meu! Deus meu! Por que me abandonaste?” (Mc 15.34). Note que nem Jesus nem Davi começam suas lamentações assim, de chofre: “Por que me abandonaste?”. Veja, antes de colocar para fora o dilema que perturba e constrange, eles dizem “Deus meu! Deus meu!”, e isso faz toda a diferença. Eles não se tornaram ateus, nem perderam a fé! As lamentações de Davi e de Jesus são totalmente construídas num contexto de amor e fé. Aquele que pergunta pelo abandono de Deus primeiro confessa que Deus é o seu Deus! Não se começa reclamando, questionando ou blasfemando. A lamentação começa com amor e adoração, com o reconhecimento da grandeza de Deus. O fato é que ela passa da adoração ao dilema, e é o dilema que a gente não suporta.
Lembro-me de uma senhora que, ao voltar da igreja para a sua casa, encontrou na sargeta seu filho baleado da cabeça aos pés. Na época, ela me procurou aos prantos e disse coisas que me perturbaram muito. Não esqueço do momento em que ela disse com gritos e lágrimas: “Meu Deus, onde estava o Senhor? Por que meu filho morreu assim? Se pudesse te ver, Senhor, te daria um soco na cara!”. Isso era insurportável de ouvir. Confesso que fiquei constrangido, minha vontade era dizer: “Calma! Não fale isso! Não blasfeme!”, porém algo mais forte do que minha assepsia me fez apenas abraça-la. Mas ela rejeitou o meu abraço e continuou vociferando contra Deus. Fiquei assustado, sem saber o que fazer, mas não demorou muito e aquela mulher exauriu-se, perdeu as forças nas pernas e caiu de joelhos. Depois de um pequeno instante silencioso, ouvi sua oração terminar assim: “Meu Deus, me perdoa! Por que falei assim com o Senhor? Te amo mais do que tudo nessa vida! Foi o Senhor que me deu esse filho e é para o Senhor que ele voltou! Louvado seja o teu nome!”.
Deus nos deu a lamentação para nos livrar da incredulidade e do cinismo. Nenhuma pergunta, por mais constrangedora e perturbadora que seja, seria capaz de assustar ou magoar a Deus, que, como disse Agostinho, “conhece os abismos da consciência humana”. Fique tranquilo, Deus não se escandaliza com nossos dilemas. Sinceramente, não há nada que você possa dizer para ele que cause nele espanto. Agora, o nosso próximo e o próximo de nosso próximo, que somos nós mesmos, não suportam a confissão do dilema. Por quê? Medo. Medo de blasfemar, medo de perder a fé, medo de parecer com um incrédulo, medo de não ser compreendido, medo, medo, medo…
Afinal, de onde vem tanto medo? Certamente não vem de Deus. O Deus da cruz não sequestrou a lamentação. Pelo contrário, foi ele quem nos deu a lamentação. Mas o que fizemos com ela? Sequestramos, e o pior de tudo é que não estamos interessados em seu resgate. Não queremos sua liberdade. Na verdade, se pudéssemos mataríamos e enterraríamos nossos lamentos de uma vez por todas. Mas isso é impossível. Um lamento nunca morre. Sua existência está intimamente ligada às razões do coração, e nenhum homem ou mulher, anjo ou demônio, por mais poderosos que sejam, podem destruir o coração e suas razões. É verdade, sequestramos a lamentação. Não ouvimos mais o seu canto nem o seu tom melancólico em nossa liturgia, mas ela ainda está aqui, bem viva dentro de nós, em nossos dilemas. Até quando, meu Deus, manteremos nosso lamento aprisionado no cativeiro de nossos medos?