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Capelania Evangélica do Rio de Janeiro

sexta-feira, 7 de junho de 2013

DOR, é hora de atacar o sofrimento




Veja on line Edição 1 737 - 6 de fevereiro de 2002

É hora de atacar
o sofrimento

Os avanços da ciência no combate
à dor crônica, mal que aflige
seis em cada dez brasileiros


Anna Paula Buchalla e Cristina Poles


A dor é, em geral, um grande aliado do ser humano, um indicador de que alguma coisa vai mal no organismo. É ela que aponta para a existência de uma doença ou avisa que o corpo pode ter chegado ao limite em razão de um esforço físico ou mesmo do stress. Mas o que fazer quando a dor é a própria doença ou simplesmente não vai embora, não passa nunca? Uma pesquisa inédita realizada com cerca de 2.000 pessoas acaba de revelar um aspecto sombrio no Brasil: seis em cada dez brasileiros sofrem de dor crônica. Segundo a Organização Mundial de Saúde, dor crônica é aquela que surge pelo menos uma vez ao mês durante seis meses. Essa dor regular se manifesta de diversas formas. Pode ser desde um incômodo que aparece poucas vezes ao mês até uma dor insuportável e constante, que irrita, tira o bom humor, atrapalha o sono, interfere no trabalho, acaba com o apetite... Para quem sofre desse martírio, a medicina oferece uma ótima notícia. Está enterrada a teoria de que a dor não pode ser combatida sob pena de mascarar a doença que a originou. Estudos produzidos nos centros de pesquisa mais destacados do mundo apontam para a dor como um alvo a ser combatido tão importante quanto a enfermidade que vitimou o paciente. Esse novo status da dor já se transformou numa lei que acaba de ser aprovada nos Estados Unidos. A partir de agora, quando alguém é internado num hospital americano, o médico precisa medir não apenas temperatura, respiração, pressão arterial e pulso, mas também avaliar o nível de dor a que o paciente está sendo submetido. Não aliviá-la é considerado negligência médica. Ela se transformou no quinto sinal vital do ser humano.
Phillip Reesan
CEFALÉIA
Quase 30% dos brasileiros sofrem de dores de cabeça crônicas. As mais comuns são a enxaqueca e a cefaléia tensional. O primeiro tipo está relacionado a distúrbios químicos cerebrais. O segundo, à contração muscular. Dores de cabeça podem se tornar freqüentes por causa do abuso de remédios. Ingerir um analgésico de venda livre mais de duas vezes por semana, durante três meses, prática adotada por 60% dos consumidores, torna o organismo dependente da substância
 
A presença intensa do mal na sociedade se explica por um conjunto de razões. Uma delas está ligada aos vícios da modernidade. Por causa do sedentarismo e do stress, as pessoas não se exercitam como deveriam e isso produz um corpo inativo, flácido e pesado. O resultado são constantes dores de cabeça, nas costas e nas articulações. Outro motivo forte para justificar o crescimento da dor é a propagação de doenças crônicas, como o câncer e o diabetes, que a têm como um dos principais sintomas. A terceira razão é a seguinte: o aumento significativo da longevidade sujeita a população a um maior número de doenças e, conseqüentemente, à dor. Para muitas pessoas, viver mais significa conhecer a dor.
Sentir dor não torna ninguém mais corajoso, não redime os pecados nem ajuda no tratamento. Muito pelo contrário. Sabe-se hoje que ela atrasa o restabelecimento da saúde. Por si só, pode levar à morte. Tratar a dor, além de melhorar a qualidade de vida do paciente, significa acelerar sua recuperação. A dor provoca uma queda no sistema imunológico, o que atrapalha a cicatrização no pós-operatório e o combate ao câncer, para ficar em apenas dois exemplos. Ela deflagra um stress físico e psicológico intenso. Faz o coração bater mais rápido e a pressão arterial subir a ponto de provocar um infarto. Cerca de metade das pessoas que sofrem de dor crônica desenvolve depressão, mais cedo ou mais tarde.
O mesmo estudo que radiografou o sofrimento em seis de cada dez brasileiros analisou também quais são as manifestações de dor mais freqüentes no país. Coordenado por Cibele Andrucioli de Mattos Pimenta, professora de enfermagem da Universidade de São Paulo, o trabalho identificou as dores crônicas mais comuns em crianças, adultos e idosos. A campeã da lista é a dor de cabeça crônica, a terrível cefaléia. Ela atinge 27% da população. Atenção: não se pode confundir esse tormento com aquela dor de cabeça que todo mundo já teve um dia. A cefaléia de cunho crônico ocupa o primeiro lugar não apenas entre os adultos, mas também entre as crianças. A segunda colocada é a lombalgia, a tradicional dor nas costas, que vitima 20% das pessoas. Dores nas pernas, nos braços e nos ombros também estão entre as mais freqüentes.
 
SÍNDROME MIOFASCIAL
São dores musculares que surgem em qualquer parte do corpo. Estão associadas a movimentos repetitivos, má postura, stress, traumatismos ou sobrecarga muscular. Atualmente, sabe-se que nem sempre o problema tem origem na área que dói. A lesão de um músculo da panturrilha, por exemplo, pode causar dor no calcanhar. O tratamento, na maioria das vezes, consiste em analgésicos, antidepressivos, injeções de xilocaína e sessões de alongamento
Ao identificar a incidência das doenças e classificá-las por faixa etária, a pesquisa derruba um mito a respeito do assunto. Há uma compreensão generalizada de que os idosos sofrem mais de dor crônica do que a camada mais jovem da sociedade. De acordo com os dados da professora Cibele, o número de pessoas com mais de 60 anos que se queixam de episódios dolorosos é até um pouco menor do que o dos adultos: 51% contra 63%. A razão é que os mais jovens se expõem com mais freqüência a movimentos mecânicos, repetitivos e realizados sob forte tensão no ambiente de trabalho, sem falar em sedentarismo, stress e obesidade. Estima-se que a dor seja a principal causa de falta ao trabalho e à escola, de licença médica e aposentadoria por doença no país. Até por uma questão econômica, o assunto tem enorme relevância, medida em muitos bilhões de reais por ano.
DORES REUMÁTICAS
Montagem com foto de Alvaro Elkis

Artrose (desgaste da cartilagem de uma articulação) e artrite reumatóide (inflamação na articulação) são as mais comuns. A primeira é uma doença degenerativa que se manifesta com mais freqüência depois dos 60 anos. A segunda, mais comum entre 30 e 50 anos, apresenta um forte componente genético. É inevitável o uso contínuo de antiinflamatórios e analgésicos com ação prolongada. Para a recuperação dos movimentos, os médicos recomendam fisioterapia


Não importa se a dor crônica é resultado de reumatismo ou decorrência de outro mal, como o câncer ou o diabetes. A forma como ela se manifesta é basicamente a mesma. O que muda é a intensidade das crises. Ela aparece na forma de pontadas, formigamentos, queimações, pequenos choques, picadas, marteladas ou apertos. A dor é sinalizada por 3 milhões de terminais nervosos espalhados pelo corpo, sobretudo na pele, músculos e vasos sanguíneos. Esses terminais funcionam como uma espécie de antena que capta o sinal de perigo para o corpo. Quando o organismo sofre uma agressão, deflagra-se uma corrente de impulsos elétricos que chegam ao cérebro. Deu-se a cadeia da dor. Nas pessoas que desconhecem o componente crônico da dor, os estímulos dolorosos sobem ao cérebro e lá ativam o sistema responsável por inibir a dor. Nas vítimas de dor crônica, há excesso ou falta de substâncias químicas como a serotonina e a noradrenalina. Em excesso, elas superestimulam a mensagem dolorosa. A falta dessas substâncias, por sua vez, inibe o sistema de supressão da dor. Resultado: qualquer estímulo externo pode deflagrar e perpetuar uma dor terrível. É o que acontece, por exemplo, com as vítimas das lesões por esforços repetitivos, atualmente chamadas de Dort – distúrbios osteomusculares relacionados ao trabalho. O uso freqüente de determinadas cadeias musculares pode ser suficiente para deflagrar um processo de dor.
As pesquisas sobre os mecanismos fisiológicos que deflagram o processo da dor levaram ao desenvolvimento, na década passada, de cirurgias e drogas sob medida para bloquear o problema. A cada ano, os remédios são aperfeiçoados e ganham versões mais potentes. A produção de analgésicos e antiinflamatórios é o ramo que mais cresce em toda a indústria farmacêutica mundial. O Brasil é o segundo maior mercado consumidor de analgésicos do mundo, com cerca de 500 milhões de dólares movimentados anualmente. Só perde para a China, com 1,3 bilhão de habitantes – uma população oito vezes maior que a nossa. Conforme estudos médicos, uma pessoa normal, com hábitos saudáveis, pode vir a precisar de três caixas de remédio por ano, no máximo quatro. Os brasileiros estão consumindo onze. A lista dos dez remédios mais procurados nas farmácias brasileiras inclui o Cataflan (analgésico e antiinflamatório), a Novalgina (analgésico e antitérmico), o Voltaren (analgésico) e a Neosaldina (analgésico). Repare: são quatro medicamentos para combater a dor. Além de tomar muito remédio, o brasileiro o faz de forma errada, baseado na automedicação. No Brasil, cerca de 60% da população consome um analgésico de venda livre mais de duas vezes por semana durante três meses. De acordo com os médicos, essa prática pode tornar o organismo dependente da substância. Na sua ausência, surgirá automaticamente a dor.
 
Montagem com foto
de Raul Junior
LOMBALGIA
A popular dor nas costas afeta 20% das pessoas no Brasil. Boa parte dos casos origina-se de hérnia de disco, que ocorre quando um dos discos amortecedores da coluna se desloca. De todas as dores crônicas, a lombalgia é a que depende mais diretamente da mudança de hábitos para ser controlada. A receita é conhecida: adotar uma boa postura, controlar o peso e fortalecer a musculatura do abdome, dos ombros e das costas
A lista dos mais vendidos trata dos remédios clássicos comprados pela população, a chamada "farmacinha" que todo mundo tem em casa para aquelas situações de emergência. A aposta do momento feita pela indústria, no entanto, está ligada à fabricação de uma geração de analgésicos e antiinflamatórios de ação mais rápida, com menos efeito colateral. Enquanto a aspirina demora cerca de meia hora para começar a fazer efeito, os laboratórios desenvolveram drogas que agem em apenas quinze minutos. Uma delas é o Zomig, fabricado pelo laboratório AstraZeneca. O princípio básico dos analgésicos comuns é inibir a ação de substâncias que causam a dor. Uma dessas substâncias é a prostaglandina. A vantagem dos novos analgésicos é que eles também aumentam a tolerância do organismo às sensações dolorosas. Os antiinflamatórios, por sua vez, deram um enorme salto no campo das reações adversas. No passado, as pessoas vítimas da dor sofriam de terrível gastrite, resultado da ingestão prolongada de remédios. A nova safra de antiinflamatórios, como o Vioxx, da Merck, e o Celebra, da Pfizer, tem a vantagem de proteger o estômago contra o ataque do medicamento. Os dois laboratórios preparam o lançamento de versões mais ágeis de seus remédios. É o mesmo medicamento, mas com uma nova molécula, com potência analgésica superior.
 
NEURALGIA DO TRIGÊMEO
É uma dor crônica rara, mas das piores que existem. É causada pela lesão do principal nervo da face, o trigêmeo, responsável pela sensibilidade de todo o rosto. Surge de uma hora para a outra e é freqüentemente confundida com dor de dente. Ainda há controvérsias sobre a origem da lesão. Uma hipótese provável é o desgaste do nervo na sua parte mais próxima ao crânio. A última palavra em tratamento clínico é o uso de substâncias anticonvulsivantes, que, a longo prazo, reduzem as crises em cerca de 85% dos casos
A ciência descobriu que não são apenas os analgésicos e os antiinflamatórios que servem no combate à dor. Alguns dos medicamentos mais eficazes e que constituem a base da terapêutica moderna contra as dores crônicas são os antidepressivos e os anticonvulsivantes – drogas desenvolvidas para outros fins. Em doses mais baixas que as destinadas ao tratamento da depressão e da epilepsia, são de extrema eficácia no combate à dor crônica. Os antidepressivos fortalecem o sistema supressor de dor e estão sendo usados com sucesso principalmente em casos de cefaléia e na dor generalizada que atinge o corpo, conhecida como fibromialgia. Novas pesquisas comprovam que o uso dos antidepressivos pode melhorar a vida dos pacientes em 80% dos casos. Os anticonvulsivantes, por sua vez, têm apresentado índices altos de eficácia no tratamento de lesões na medula e no sistema nervoso central. Tais doenças produzem dores terríveis e resistentes à maioria dos medicamentos. "A agravante, nesse caso, é que essas dores são para sempre. Ao contrário de outros tecidos, nervos lesionados ainda não podem ser reconstituídos", explica o neurocirurgião Claudio Fernandes Corrêa, chefe da Clínica de Dor do Hospital Nove de Julho, em São Paulo.
Uma das maiores preocupações dos estudiosos no campo da dor diz respeito à situação dos pacientes com câncer. A chamada dor "oncológica" é uma das piores que um ser humano pode experimentar. Vítimas de tumores no pâncreas, no esôfago e de metástases ósseas são as que mais sofrem. Cerca de 90% dos pacientes em estágio avançado da doença padecem de dores. Para 30% desses, elas são terríveis. Com medicamento adequado, 60% dos casos poderiam ser evitados. Para eles, a ciência não descobriu nada melhor que a morfina e seus derivados. Infelizmente, em alguns casos o sofrimento é prolongado em razão da resistência cultural dos profissionais da área de saúde no Brasil. O médico não gosta de prescrever morfina com medo de que seus pacientes desenvolvam dependência química. Enquanto os médicos americanos receitam por dia 658 doses de morfina para cada milhão de pacientes, no Brasil a relação é de uma dose por milhão. "Ainda existe um grande preconceito em relação a essa droga, mas seu índice de dependência é baixo, não passa de 1%", diz João Augusto Figueiró, coordenador do Programa Nacional de Educação Continuada em Dor e Cuidados Paliativos da Associação Médica Brasileira.
Pesquisa inédita do Centro de Dor do Hospital das Clínicas, em São Paulo, realizada com 650 pacientes com dor crônica, revela o despreparo de muitos médicos para diagnosticar e tratar a dor. Antes de chegar ao hospital, cada um deles havia peregrinado por uma média de oito consultórios médicos e não havia sido tratado de forma correta. E aqui surge um tremendo complicador. A dor é algo pessoal e intransferível e o médico precisa basear o tratamento na descrição feita pelo paciente. Isso pode produzir um entrave na comunicação entre o profissional e o doente. Será que a dor de um paciente descrita por ele como lancinante não é apenas uma indicação de que sua tolerância aos episódios dolorosos é baixa? Ou já seria o caso de ministrar morfina? E o que fazer com uma criança que grita, mas não consegue expressar verbalmente a qualidade do seu sofrimento? Daí a importância do preparo do médico que lida com a dor. Com o devido treinamento, ele terá condições de, conversando com o paciente, identificar a dor com a mesma segurança de uma mãe que escuta o choro do filho e sabe pelo berreiro se é hora de alimentá-lo ou de apenas trocar a fralda. A Associação Médica Brasileira iniciou uma campanha de conscientização e orientação sobre a dor entre os profissionais de saúde. Campanhas como essa são fundamentais. Segundo os especialistas, apesar de todo o arsenal químico disponível no mercado, enfrenta-se no Brasil uma dura estatística resultante da desinformação: 80% dos pacientes sofrem desnecessariamente.
Os laboratórios conseguiram desenvolver alguns derivados da morfina até 100 vezes mais potentes que a morfina tradicional. A vantagem adicional dos novos medicamentos está ligada à segurança, o que faz com que os derivados de morfina deixem de ser receitados apenas para pacientes terminais. Um desses remédios é uma pílula dotada de um revestimento especial que faz com que a liberação da substância seja lenta e regular. São os chamados remédios inteligentes. Com isso, consegue-se manter um nível constante da droga no organismo, dispensando doses exageradas, que aumentam o risco de viciar o doente. Como a dose é menor, efeitos colaterais como vômitos, prisão de ventre, sonolência e falta de ar são quase inexistentes. Depois dos comprimidos de liberação gradual, há ainda analgésicos sob a forma de pomadas e cápsulas implantadas sob a pele. Um dos produtos mais curiosos em estudo é o Ziconitide, uma bomba de efeito anestésico. Versão sintética do veneno de uma lesma encontrada nos mares das Filipinas, ele promete eliminar dores crônicas que não respondem a tratamentos convencionais. Chega a ser 1.000 vezes mais potente que a morfina. A ciência acredita que esse é apenas o começo. "Tudo indica que, em poucas décadas, teremos o controle definitivo da dor", afirma Russell Portenoy, um dos maiores especialistas americanos em dor, do Beth Israel Medical Center, em Boston.

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