C A H E R J

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Capelania Evangélica do Rio de Janeiro

quinta-feira, 30 de maio de 2013

CUIDADO PALIATIVO - ESPIRITUALIDADE E O PACIENTE TERMINAL

ESPIRITUALIDADE E O PACIENTE TERMINAL
Eleny Vassão de Paula Aitken


Cremesp - agenusp@usp.br  
Publicado em 3/março/2010 |  Editoria : Publicações 
Cremesp fica na Rua da Consolação, 753, Centro, São Paulo.

Mais informações site: www.cremesp.org.br/library/modulos/legislacao/integras_pdf/livro_cuidado%20paliativo.pdf
De autoria de 47 autores e colaboradores, incluindo profissionais do Programa de Atendimento Domiciliar e de Cuidados Paliativos (PAD) do Hospital Universitário (HU) da USP, o livro Cuidado Paliativo está sendo distribuído gratuitamente a profissionais e estudantes da saúde na na sede do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) e em versão online pelo site do Conselho. Organizada pelo Cremesp, a obra já esgotou as duas primeiras tiragens.




Introdução
— “Doutor, o senhor tem me acompanhado há mais de dez anos nesta doença,
com todo o carinho e franqueza, e agora não tem coragem de olhar nos meus olhos e
me dizer que estou morrendo?”
— “Doutor, eu estou morrendo? Fale comigo sobre a morte! Converse comigo
francamente, como o senhor sempre fez em relação às minhas doenças oportunistas
na Aids. Diga-me francamente o que ainda posso esperar da Medicina! Como será o
meu fim? Terei muita dor?”
Delicadamente, o médico tomou a mão de D. Maria entre as suas e, olhando-a
com profunda ternura, disse: “É verdade, minha amiga. Você está caminhando para o
fim de seus dias. Agora, a Medicina não tem muito a lhe oferecer para a cura de suas
doenças, mas eu lhe prometo estar ao seu lado até o fim, aliviando suas dores, conversando
com você e dando todo o apoio aos seus filhos.”
Aquela franqueza sossegou D. Maria, que repentinamente ficou mais alegre, brincou
com o doutor e logo voltou à sua sonolência, como que aliviando a dor da
verdade e prolongando um pouquinho mais os seus dias. A revolta de ter sido infectada
pelo marido há muito já se fora, e agora ficava a saudade dos seus filhos e netos,
como se, viajando para uma terra muito distante e sem volta, não tivesse abraços e
palavras suficientes para consolar e para despedir-se daqueles a quem tanto amava.
Todos os profissionais que se aproximavam de d. Maria percebiam que, apesar
de toda a sua tristeza, havia no ar uma nota de vitória, que nem mesmo a sombra da
morte pudera derrotar. A paz que inundava seu semblante dolorido trazia como que
um doce perfume àquele quarto, atraindo a curiosidade de alguns profissionais da
saúde antes endurecidos por já terem contemplado tantas perdas.
Mas aquela paciente era diferente. Seu corpo definhava dia-a-dia, mas seu espírito
estava mais vivo, maduro, e parecia sustentá-la, apesar de nem mesmo o mais
leve cheiro de esperança existir no ar.

O que fazia com que aquela senhora enfrentasse a morte com tal calma e dignidade?
Haveria alguma relação benéfica entre suas crenças e sua reação diante da morte?
A Fragilidade do Adoecer
“A minha vida está desaparecendo como fumaça,
e o meu corpo queima como se estivesse no fogo.
Estou acabado como a grama que foi cortada e pisada;
não tenho vontade de comer.
Fico gemendo alto; sou apenas pele e osso.
Sou como um pássaro em lugares desertos,
como uma coruja numa casa abandonada.
Não consigo dormir;
sou como um pássaro solitário em cima do telhado1.”
Salmo 102:3-7
D. Maria nunca pensara em ficar num hospital no fim de seus dias. Ser vencida
pela doença não estava em seus planos.
O adoecer é o evento da vida que nos faz questionar a nós mesmos, nossos propósitos,
valores e o sentido da vida. Ele interrompe as nossas carreiras, abala a nossa vida
familiar, tira a nossa paz, e nos faz sentir um forte temor do desconhecido e da possibilidade
de virmos a perder o controle sobre as circunstâncias da nossa vida.
Um outro paciente, que viveu muitos séculos atrás, era um grande rei: Ezequias, o rei
de Israel. Ele ficou muito doente, às portas da morte. O profeta Isaías foi visitá-lo e disse:
“O Senhor Deus disse assim:
Ponha as suas coisas em ordem,
porque você não vai sarar.
Apronte-se para morrer.”1
A doença não escolhe classe social, raça, credo ou nível cultural. Diante da
doença e da morte, somos colocados todos na mesma terrível situação.
Como qualquer outro ser, Ezequias também se sentiu tomado de surpresa, cheio
de medo e disposto a barganhar com Deus e com os homens para ser poupado. Se
possível, queria ganhar mais alguns anos, meses, ou até mesmo dias de vida.
É interessante como, diante da morte, tomamos consciência de que realmente
somos pequenos e frágeis. Do alto de nossos saltos de orgulho pelas nossas conquistas,
títulos e realizações, raramente paramos para pensar que mesmo que possamos
ter domínio sobre a ciência, de curar ou atuarmos na área da saúde, isto não nos
torna imunes aos mesmos sofrimentos daqueles pacientes a quem tratamos e acompanhamos
até a morte.

Se estivéssemos sempre sendo lembrados deste fato, talvez tratássemos os nossos
pacientes com maior humildade e humanidade, pois veríamos refletido em seu
corpo caquético o nosso próprio retrato, relembrando-nos de que a nossa hora
também chegará.
Ezequias, um rei diante do Rei dos reis, lembra-se que, por baixo de suas vestes
reais, ainda tem um corpo humano, e chora amargamente diante do Deus a quem
conhecia e com o qual tinha um relacionamento aberto e íntimo. Deus responde às
suas orações prolongando sua vida por mais quinze anos. Ao responder-lhe afirmativamente,
dá-lhe um sinal, fazendo com que a sombra retroceda dez graus (os astrônomos
confirmam este mistério), e então ele escreve um hino de louvor, do qual
citamos apenas parte, onde ele filosofa sobre a fragilidade de sua vida, ao mesmo
tempo em que revela sua espiritualidade:
“ A minha vida foi cortada e terminada
como uma barraca de pastores
que é desmontada e levada para longe
como um pedaço de pano que
o tecelão corta de uma peça de tecido.
Dia e noite eu pensava
que Deus já ia acabar comigo.
A noite inteira, eu gritava de dor,
Como se um leão estivesse
Quebrando os meus ossos.
Dia e noite eu pensava que
Deus já ia acabar comigo.
Eu soltava fracos gemidos de dor
como uma andorinha
e gemia como uma pomba.
Os meus olhos se cansaram
de olhar para o céu.
Ó Senhor, estou sofrendo! Salva-me!
Isaías 38:12-14
Espiritualidade, Fé e Religiosidade
O tema espiritualidade reemerge em meio à alta tecnologia, ao materialismo
de nossa época, como um desafio a pensar em algo mais alto e além de nossa
própria capacidade, de nosso próprio domínio e controle. Digo reemerge, pois a
separação entre ciência e espiritualidade, ou religiosidade, não existia, como cita
Almananza-Munõz e Holland, no artigo “Espiritualidad y Detección de ‘Distress’
en Psico-Oncologia”2:
“Tradicionalmente a religião tem oferecido ao ser humano um marco de devoção
estruturante, que proporciona alívio e consolo. Isto se soma a consideração de
vínculo antigo entre espiritualidade e saúde e a alguns achados recentes no campo
clínico e na área de investigação, que nos levam a refletir em torno da importante
função da espiritualidade no contexto do cuidado médico. De fato, o vínculo histórico
entre medicina e religião se reporta muito além da era industrial, sendo relevante
que no início do cristianismo os médicos eram, em sua maioria, membros da
igreja, cuja orientação à coletividade incluía um interesse genuíno na totalidade da
pessoa... A relevância da espiritualidade tem sido ressaltada, em distintas perspectivas,
por médicos célebres como William Osler (1910), Benjamim Rush (1911),
Freud (1930); Fromm (1930).
Há tantos conceitos sobre espiritualidade quanto os livros escritos, sejam eles
explícitos ou não. Dentre tantos, destacamos estes :
Espiritualidade vem do latim Espíritu, vocábulo relacionado com respiração, como
um ato inquestionavelmente vital. Tal conceito leva à percepção da espiritualidade
como um processo de interação entre a nossa consciência e a relação com Deus ou
com um Poder Superior, em função do que chamamos de Fé. A fé implica a certeza
de algo sem evidência material do mesmo. Religião alude a uma instituição cultural
ou grupal, em torno de um culto específico, que tem lugar e tempo particulares,
oferecendo consolo nas privações, favorecendo a auto-aceitação e diminuindo os
sentimentos de culpa3 .
Cristina Puchalski e o Reverendo Carlos Sandoval citam o artigo da Associação
Americana de Escolas Médicas, onde a espiritualidade é expressa pela busca de uma
pessoa pelo sentido último, através da participação na religião e/ou crença em Deus,
família, naturalismo, humanismo e artes. Todos estes fatores podem influenciar na
forma como os pacientes e os profissionais da saúde percebem a saúde e a doença e
como interagem com uma e outra.
Eles citam, também, que segundo pesquisas do Gallup (1997), os pacientes
disseram que queriam que suas necessidades espirituais fossem consideradas quando
eles estivessem próximos da morte. Pacientes com câncer avançado que tinham
crenças espirituais, mostraram-se mais satisfeitos com suas vidas, eram mais felizes,
e sentiam menos dor, comparados àqueles sem crenças espirituais4. Uma pesquisa
feita pela American Pain Society mostrou que a oração era o segundo método
mais usado no manejo da dor, depois de medicações orais para dor, e o método
não-ligado à droga mais comum, no manejo da dor.

A espiritualidade está associada a menores índices de mortalidade, menor depressão,
menor risco de cirrose, enfisema, suicídio e morte por isquemia cardíaca, assim
como menor uso de serviços hospitalares, e inclusive menor tendência de fumar.
Harold Koenig, Diretor do Centro de Estudos sobre Religião/Espiritualidade e
Saúde da Universidade de Duke, tem sido um dos maiores expoentes nas pesquisas
que buscam mostrar o impacto da fé sobre a saúde física e mental. Ele tem dezenas
de livros e mais de duzentos artigos publicados sobre o tema, em diversas modalidades
médicas.
Koenig foi despertado para o tema quando, ao atender uma paciente de seu colega
que havia saido em férias, defrontou-se com um caso sem explicação clínica.
Aquela senhora havia perdido seu único filho em terrível acidente. Seis meses depois,
seu marido também faleceu. No funeral de seu querido, o chão do cemitério
estava muito liso e escorregadio, devido a uma nevasca na noite anterior, o que a fez
escorregar e fraturar o fêmur.
Quando o Dr. Koenig foi atendê-la, ela estava hospitalizada há cerca de quatro
meses, pois tivera uma séria infecção depois da cirurgia. Cabisbaixo, enquanto andava
pelos corredores em direção ao quarto da paciente, pensava em como ele próprio
ficaria, se tivesse que enfrentar todas estas perdas.
Preparou-se para encontrar uma mulher amarga, rancorosa e deprimida, com
quem seria difícil se relacionar.
Para sua surpresa, defrontou-se com uma senhora de rosto meigo e tranqüilo,
que, sentada em seu leito, calmamente lia sua Bíblia. Ao ver o olhar perplexo do
médico, perguntou-lhe: “Posso ajudá-lo em alguma coisa, doutor?”
Entre tantos temas que tem pesquisado, Koenig, citando o psicólogo social
Gordon Alport, em uma série de estudos pioneiros datando de 1950, faz uma clara
distinção entre pessoas que vivem uma religiosidade extrínseca de outras que têm
uma religiosidade intrínseca.
Ele define como “extrínseca” a religiosidade de uma pessoa que usa a religião
para alcançar algo ‘não espiritual’, como encontrar amigos, alcançar estatus social,
prestígio ou poder.
A religiosidade “intrínseca” pode ser ilustrada como aquela pessoa que tem uma
profunda e forte fé interior como principal força motivadora de sua vida, afetando
suas decisões e comportamentos diários, e é caracterizada por um íntimo relacionamento
pessoal com Deus, que inclui também: frequência à comunidade religiosa,
definição de suas crenças religiosas, importância da oração, conhecimento da literatura
religiosa, o uso da religião para lidar com o stress, e o suporte social oferecido
pela comunidade religiosa.

Com base nas afirmações de Allport, foram criadas as escalas que visam medir a
atitude religiosa de pacientes, enfocando a religiosidade intrínseca, pois esta resulta
em satisfação, segurança e bem-estar.
Quanto ao papel das crenças religiosas na terminalidade, Koenig diz:
“As crenças religiosas podem ter um papel em ajudar os pacientes a construírem
o sentido de um sofrimento inerente à doença, o que pode, por sua vez, facilitar a
aceitação de sua situação8.”
Tratando do tema ‘Depressão’, ele diz:
“Eu não digo que pessoas religiosas nunca sofrem de depressão... Mas pequisas
têm demonstrado que elas têm a habilidade de se recuperar de estados mentais negativos
mais rapidamente e mais efetivamente do que aqueles que não têm fé. Elas
vivem em um universo que é dirigido por um benevolente e onipotente Deus, que
cuida de toda a sua criação, responde suas orações, faz milagres, e oferece ilimitada
graça para quem crer. Neste mundo, cada evento da vida tem um propósito e significado,
mesmo que seja algo negativo, como uma doença ou um problema financeiro.
A pessoa religiosa é capaz de transformar a pior situação em experiência positiva9 .
Reed, em 1986, comparou pacientes terminais com adultos saudáveis, em termos
de ‘religiosidade e senso de bem-estar’. Os resultados apontaram, entre 300
participantes, que um significativo número de adultos em fase terminal demostrou
uma crescente espiritualidade sobre outros pacientes não terminais ou adultos
saudáveis. Pacientes terminais adultos também mostraram mais altas perspectivas
espirituais do que os outros mencionados. Há também uma baixa, mas significante,
correlação positiva entre espiritualidade e bem-estar para os pacientes terminais
adultos do grupo.
Em pesquisas que estudavam as respostas psicológicas e fisiológicas de pacientes
com câncer, Greer, Morris e Pettingale descobriram que mulheres que haviam sido
diagnosticadas com câncer de mama e se recusaram a perder a esperança tiveram
um melhor prognóstico do que aquelas que aceitaram passivamente sua doença.11
O tema “fé e espiritualidade” tem se tornado tão importante no meio que o ensino
e a prática da medicina estão mudando. Hoje, mais de 60 escolas de medicina nos
EUA têm cursos eletivos em religião, espiritualidade e medicina, incluindo Harvard,
John Hopkins, Brown, Case-Western, University of Chicago, University of Pennsylvania,
Washington University of St. Louis e outras1.
Puchalski e Romer (2000) têm defendido o valor da incorporação de um histórico
espiritual aos registros médicos de rotina, pois este ofereceria aos médicos elementos
contextuais, para que não apenas compreendam melhor seus pacientes como
também comecem a atender a algumas das suas necessidades espirituais.

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