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Capelania Evangélica do Rio de Janeiro

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

A espiritualidade no cuidar ao usuário do PSF, enfatizando a educação popular em saúde

A espiritualidade no cuidar ao usuário do PSF, enfatizando a educação popular em saúde 



Patricia Serpa da Souza Batista


Convive-se com uma crescente busca da população pelo desenvolvimento da
espiritualidade e da religiosidade. Este aspecto é atribuído por Soares e Lima (2005) à
deficiência do setor saúde, como também a necessidade de aliviar o sofrimento e de buscar
a cura. Segundo Valla (1998), há uma procura das classes populares por todas as religiões.
Esta procura é explicada principalmente pelos problemas causados pelo crescimento da
urbanização, pelo aumento das necessidades individuais e coletivas e pela dilapidação dos
direitos sociais e humanos.
A prática da religião pelas classes populares contribui para amenizar o sofrimento,
aliviar as angústias das pessoas, como também é associada ao processo saúde-doença e à
cura. A religião renova as forças para os embates cotidianos na luta pela sobrevivência.
Segundo Ferreira (2006), as religiões referem-se à crença na existência de uma
força ou de forças sobrenaturais, manifestação de tal crença por meio de doutrina e ritual
próprios, reverência às coisas sagradas, crença fervorosa, devoção, fé, culto, posição
filosófica, ética, metafísica. Para Dalai-Lama (apud BOFF, 2001a), a religião está
relacionada com a crença no direito à salvação, pregada por qualquer tradição de fé,
associada a ensinamentos ou dogmas religiosos, rituais, orações.  

Ao distinguir a religião da espiritualidade, Boff (2001a, p. 80) afirma que as
religiões constituem uma construção do ser humano que trabalha com o divino, com o
sagrado, mas não são o espiritual. A espiritualidade é uma dimensão de cada ser humano.
Esta dimensão espiritual que cada pessoa possui se revela pela capacidade de diálogo
consigo mesmo, com o próprio coração, traduzindo-se “pelo amor, pela sensibilidade, pela compaixão, pela escuta do outro, pela responsabilidade e pelo cuidado como atitude
fundamental”.
Espiritualidade implica todo esse conjunto de relações. No ser humano, é a
capacidade de transformar os fatos em uma experiência de libertação, em um projeto, em
uma prática em defesa da vida, de sua sacralidade, protestando contra todos os mecanismos
de morte, em todas as circunstâncias (BOFF, 1997).
 Vale ressaltar que o trabalho em saúde, realizado na atenção básica, muito tem
contribuído no sentido de promover um cuidado voltado para as necessidades do
indivíduo, da família e da comunidade, sendo  desenvolvido nas Unidades de Saúde da
Família, como também através de visitas  domiciliares, cujo contato com pessoas
portadoras  de doenças importantes, como também com famílias submetidas a situações de
risco e sofrimento, favorece  uma oportunidade de encontro entre educador e educando,
gerando apoio para enfrentamento de ameaça de vida e energia para encarar a
sobrevivência.
Nesse sentido, destaca-se a metodologia da educação popular em saúde, voltada
para o desenvolvimento de uma ação pedagógica direcionada ao ser humano inserido em
seu contexto de vida. Vasconcelos (1997), esclarece que a educação popular trabalha
pedagogicamente o homem e os grupos envolvidos no processo de participação popular
através de formas coletivas de aprendizado e investigação, promovendo análise crítica
sobre a realidade e estratégias de luta e enfrentamento.

No campo da saúde, a educação popular atua como estratégia de superação da
grande distância que existe entre o serviço de saúde e o saber científico de um lado e, de
outro, a dinâmica que envolve o adoecimento e cura. A educação popular em saúde realiza
ações que envolvem as dimensões do diálogo, do respeito e da valorização do saber
popular, sendo considerada um instrumento de  construção para saúde mais integral e
adequada à vida da população (VASCONCELOS, 2006).
Nesse contexto, nas Unidades de Saúde da Família, inseridos no ambiente físico e
cultural onde mora cada família, a convivência diária dos profissionais com os moradores
“tende a ir mostrando a ineficácia do modelo da biomedicina em modificar a dinâmica de
adoecimento e cura. Os profissionais vão sendo desafiados a experimentar práticas de
educação em saúde, passando a se assustar com a complexidade desse tipo de
intervenção” (VASCONCELOS, 2006, p. 58).  

Na educação popular em saúde, os profissionais trabalham com o universo de
significados, de crenças, de valores, apreendidos na comunidade, como também convivem
com a espiritualidade e a religiosidade que fazem parte da população. Dentro dessa
perspectiva, estes profissionais devem agir, relacionando-se efetivamente com a população,
refletindo sobre o cotidiano das pessoas, considerando o conhecimento popular, a escuta, o
diálogo, os sentimentos dos indivíduos que  estão sendo cuidados. Vale ressaltar que,
segundo Freire (2005b), quando o diálogo é fundamentado no amor, na humildade e na fé
nos homens, se faz uma relação horizontal em que a confiança mútua é conseqüência
óbvia, gerando esperança e transformação. É dentro dessa dimensão que os profissionais
envolvidos na educação popular procuram vivenciar a transformação social, acolhendo o
indivíduo, respeitando-o em sua autonomia e valorizando-o como cidadão.
Em seu livro Educação e Mudança, Freire  (2005a), ao se referir ao homem como
um ser de relações, afirma que, quando este compreende a realidade, pode levantar
hipóteses sobre o desafio dessa realidade e procurar soluções, podendo transformá-la.
No âmbito do PSF, os profissionais de saúde têm contato com pessoas portadoras
dos mais diversos problemas. A doença crônica, o envelhecimento, a solidão e a
possibilidade de finitude são exemplos de  situações vivenciadas pelo ser humano que o
levam a buscar um encontro consigo mesmo, com a sua espiritualidade, a fim de encontrar
forças para superar, por exemplo, a doença,  a solidão e o temor da morte, libertando-se,
numa atitude de transcendência. Para Boff (2000), a transcendência diz respeito à
capacidade de romper limites, de superar, projetar-se sempre num mais além.
Em estudo realizado com mulheres sobre a  vivência da espiritualidade, Sousa e
Batista (2006) evidenciaram, entre outros aspectos, que a espiritualidade é considerada um
apoio em suas vidas. É através do desenvolvimento da espiritualidade que estas mulheres
encontram apoio para o enfrentamento cotidiano da solidão e da tristeza, gerando
amadurecimento para uma vida interior, aceitação das perdas de entes queridos, da saída
dos filhos de casa, de seu envelhecimento, da doença e, até mesmo, de sua finitude.

Ao se reportar a espiritualidade na atenção primária à saúde, Smeke (2006, p. 298),
descreve que na prática cotidiana de cuidar, quer seja na consulta, no grupo ou no
domicílio, muitas vezes os profissionais se deparam com um emaranhado de queixas,
dores, carências que se confundem e extravasam os limites da doença. Nesse momento, o
sofrimento claramente extrapola a relação orgânica e “se quisermos realmente ajudar,
saíremos  de nosso papel profissional e devemos colocar em ação o nosso lado humano”.

A autora refere que o desenvolvimento de ações com sensibilidade, perspicácia, intuição,
interação, por vezes, têm o poder de aliviar muito mais do que grande parte das
medicações em uso. É quando o profissional entra em contato com a dimensão que
extrapola o espaço somatopsíquico do ser que está sendo cuidado e através da escuta
qualificada, do ato de acolher, gera compreensão, esperança, alívio da dor e sofrimento.
Outro aspecto que merece destaque, diz respeito a situações que envolvem o cuidar
de pessoas em estado terminal de vida. Nestas situações, torna-se muito importante a
prática educativa do profissional, auxiliando através do diálogo e da escuta, no processo de
aceitação da doença, minimizando medos, procurando dar apoio e conforto ao indivíduo e
a família através da visita domiciliar. Nesses momentos em que a cura do corpo não é mais
alcançável, Huf (2002) destaca a importância do resgate da espiritualidade como meio de
transformar os momentos de angústia, respeitando as crenças da pessoa, priorizando a
busca pela paz interior, procurando promover o bem estar, apesar da inevitabilidade do
sofrimento. A autora considera que vivenciar  a espiritualidade inclui exercitar a fé, a
esperança, o altruísmo, a solidariedade, aceitando a finitude como uma experiência que
propicia sensibilizar-se com o outro e encontrar um significado para sua própria existência.
Assim, o profissional de saúde precisa proporcionar um cuidado ao ser humano
numa perspectiva holística, valorizando o apoio espiritual, visando a que este possa
vivenciar momentos difíceis, com serenidade. Conforme Leloup e Hennezel (2003),
espiritualidade é dar um “passo a mais” na aceitação dos próprios limites, como também
diante do sofrimento, e ser solidário com quem necessita. É, simplesmente, na situação em
que se está dar esse “passo a mais” e ajudar o outro a fazer a mesma coisa diante de suas
dificuldades.
Entretanto, para que este profissional  consiga perceber a subjetividade, a
espiritualidade do outro, é preciso que tenha consciência de que também é um ser
biopsicossocial e espiritual, que precisa se autoconhecer, autodescobrir-se, e
principalmente aprender a desenvolver a sua  espiritualidade. Logo, este se sentirá mais
apto a ajudar o outro a conviver com os problemas que o envolvem de maneira satisfatória.
Como afirma Vasconcelos (2006), o desenvolvimento da  espiritualidade permite ao
profissional da saúde integrar em si as dimensões racional, sensitiva, afetiva e intuitiva as
quais permitirão uma maior proximidade com a pessoa sob seus cuidados e melhores
condições de lidar com as situações de crise que a envolvem.

Paiva e Fernandes (2006, p. 186) afirmam que a espiritualidade na prática do cuidar
desenvolvida na atenção básica é uma dimensão importante tanto para os profissionais
envolvidos no processo quanto para os usuários, pois “é nessa dimensão da espiritualidade
que se encontra o sentido da existência, e das vicissitudes dessa existência concretizadas
na doença, no cuidado, na consciência de finitude e da solidariedade.”
Nessa perspectiva, o cuidado  pode ser visualizado como  “uma inter-relação
dinâmica, permeada pela ética, que ocorre entre o ser que cuida e o ser que é cuidado, em
situação de saúde e doença” (BATISTA; COSTA, 2002, p. 49). O cuidar compreende não
só a técnica, mas também conhecimento, expressão de sensibilidade, comportamentos e
atitudes que fazem parte das características singulares de cada ser no momento do cuidado.
Um dos aspectos mais importantes do cuidar é que este conduz  a um processo de
transformação dos seres através do desenvolvimento de suas capacidades de saber e amar
(BATISTA; COSTA, 2002).
A espiritualidade, na prática do cuidar ao usuário do PSF, portanto, possibilita aos
profissionais atuarem de modo efetivo no campo da educação popular em saúde, uma vez
que proporciona uma maior aproximação entre  o cuidador e o ser cuidado, contribuindo
para um cuidar que atenda ao ser humano de forma integral, valorizando a sua
singularidade.

Conclusão
A realização deste estudo visou possibilitar uma melhor compreensão acerca da
espiritualidade na prática do cuidar ao usuário do Programa Saúde da Família, enfatizando
a educação popular em saúde.
Durante seu desenvolvimento, percebemos que a valorização da espiritualidade no
cuidar é uma prática que está em construção. Ainda estamos aprendendo a colocar a
espiritualidade em nosso cotidiano de trabalhadores de saúde engajados no cuidar,
principalmente porque ainda vivenciamos  uma prática muito voltada para a cura e
medicalização.
Por outro lado, é oportuno destacar que o trabalho em saúde envolve problemas
complexos, de múltiplas dimensões, e o conhecimento científico da biomedicina tem
respostas apenas para alguns aspectos. Desse modo, “a razão não é suficiente para lidar
com toda essa complexidade, exigindo também a intuição, a emoção, e a acuidade de
percepção sensível” (VASCONCELOS, 2006, p. 55).

Assim, é preciso perceber a integralidade da vida com toda sua subjetividade. Nesse
sentido, a prática do cuidar, desenvolvida através da educação popular em saúde na
atenção básica, notadamente nas Unidades de Saúde da Família, tem sido um grande
manancial de possibilidades, visto que nesses locais os profissionais das equipes do PSF
entram em contato com todas as peculiaridades dos indivíduos, família e comunidade sob
seus cuidados. Desse modo, deve procurar percebê-los tanto em suas necessidades
biológicas, como também em suas necessidades no campo psicológico, social e espiritual,
respeitando as suas crenças, seus valores, sua cultura, seu próprio modo de ser e de viver.  
Entendemos a espiritualidade, na prática da educação popular em saúde, como uma
força capaz de transformar o ser humano, ajudando-o a enfrentar as dificuldades da vida,
como também a doença, com otimismo e esperança.
Através da educação popular em saúde, dentro da estratégia da saúde da família, o
profissional vai criando vínculos com a comunidade e, aos poucos, vai encontrando meios
de ajudá-los.  Quando o indivíduo está doente, ele e sua família podem encontrar-se mais
fragilizados e, portanto, geralmente, mais receptivos  à atenção oferecida pelo profissional.
Conforme Teixeira (2006, p. 361), “é a espiritualidade que proporciona e aciona
um novo potencial de ser humano, sendo uma importante concretização do cuidado”. Para
o autor, esta espiritualidade “mantém acesa no sujeito a chama da abertura à alteridade,
da humildade essencial, do valor e dignidade do outro, do compromisso ético e da
compaixão”.
Desse modo, ao considerar a espiritualidade nas ações de educação popular, o
profissional contribuirá para  que o indivíduo valorize a vida e, realmente, vivencie com
mais serenidade, situações, tais como, a doença crônica que lhe tira as forças físicas a cada
dia, o alcoolismo do familiar, a morte de um filho.
De acordo com Boff (2001a, p. 73), em momentos de crise, quando, por exemplo,
morre um ente querido, ou se desfaz um matrimônio, ou quando se perde um filho para o
mundo da droga, é fundamental a espiritualidade. É poder ver  a temporalidade e  “saber
que não estamos vivos apenas porque  não morremos, mas porque a vida é uma
oportunidade para crescer, para aceitar nossas canseiras, nosso envelhecimento e nossa
mortalidade”. O autor acrescenta que só assim,  “maduraremos para uma vida interior,
espiritual, inalcançável pelo desgaste e pela morte”.

Por outro lado, o profissional de saúde que trabalha com a prática comunitária
precisa vivenciar o desenvolvimento de sua própria espiritualidade, pois, desta forma, adquirirá melhor sensibilidade e compreensão para lidar com os problemas que fazem parte
da vida do próximo. Este aspecto faz destacar a necessidade de que as academias priorizem
a temática espiritualidade em  seus currículos, permitindo ao  futuro profissional adquirir
uma maior amplitude de conhecimentos com vistas a melhor se preparar para a prática
cotidiana do cuidar.
Assim, estaremos construindo uma prática do cuidar pautada no respeito à
dignidade humana e na ética, como também contribuindo para o desenvolvimento de um
novo paradigma, pois como refere Boff (2001b, p. 19), “a espiritualidade pode permitir
um parto feliz de um novo paradigma civilizacional, que supomos mais sensível, mais
cordial e mais espiritual, capaz de garantir um futuro promissor para a terra e os filhos da
terra, os seres humanos”.
Esperamos que este estudo abra novos horizontes com relação à espiritualidade na
prática do cuidar ao usuário do Programa Saúde da Família, dentro da perspectiva da
educação popular em saúde, proporcionando reflexões sobre a temática, como também
suscitando o desenvolvimento de novos trabalhos nesta área do conhecimento.

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